A Utilidade disfarçada dos meus dedos

Semestre passado numa aula de antropologia ouvi algo que despertou meu interesse. Não sei bem do que estávamos falando, mas lembro de ouvir minha professora dizer da inutilidade dos dedinhos do pé. Logo me chamou a atenção, pois meus dedinhos possuem uma particularidade no assunto: eles não encostam no chão. Isso mesmo, vivem suspensos no ar por causa de uma má formação que vou explicar em seguida. No fundo a pergunta continua latejando na minha mente: para que servem os dedos mínimos do pé? Não proporcionam equilíbrio, não coçam o outro pé por estarem distantes e são tão pequenos que passam quase sempre despercebidos. Quase.
Minha angustia não se deve ao fato de sua utilidade física corpórea, mas especialmente pela função estética que possui.
Tudo começou quando tinha apenas 10 anos, e isso já faz algum tempo. Minha madrinha de batismo trazia para mim em todos os aniversários um tênis Yate, cada ano de uma cor, no entanto todo ano ela comprava um número menor do pé que crescia normalmente. Talvez por isso eu goste tanto da música Sapato 36 do Raul Seixas. E a inbecilidade infantil me fazia vestir o tênis sem reclamar, minha própria mãe acabava não sabendo que o dito estava apertando meus dedos fazendo-os quase sufocar.
Primeiro apareceram calos nos dedinhos inúteis que aos poucos ganhavam a forma do tênis, em seguida sem que eu mesmo percebesse, eles já começavam a abandonar o contato com a terra. Seria um avanço tecno-biológico do meu corpo? Ou minha resignação estava começando a afetar meus neurônios que me impediam de reclamar? Não sei, só sei que após três aniversários ganhando o mesmo presente o estrago estava feito. Meus dedinhos nunca mais encostariam no chão normalmente.

Dois dedo e meio

Passados os anos, adolescência chegou e com ela os problemas de vaidade excessiva que me faziam encolher cada vez que usava um chinelo, meu irmão foi o primeiro que percebeu o problema. Como eu dizia que ele tinha um pé chato que parecia uma raquete, não imaginava que o trunfo dele estava moldado até o dia que ele apontou para o chão e desabou de tanto rir. Eu procurava sempre não deixar o assunto aflorar, pois sabia que perderia no primeiro round. Na família, os parentes começaram a dar sugestões esdrúxulas como, por exemplo, usar uma fita adesiva para fazê-lo voltar ao normal, ou então um sapato ortopédico daqueles pretos que pareciam ser feitos para bonecos. Não, mil vezes não! Até chegar ao absurdo de sugerirem uma cirurgia que devolvesse a mobilidade total dos dedos.
Depois de escancarem meu defeito inexplicável, pois ninguém acreditava na história do tênis apertado, procurei inventar alguns disfarces para não passar tanta vergonha.
Primeiro foram as papeetes, naquela época a melhor invenção do mundo. Quando eu usava chinelos de dedo, alías esse nome é horrível, e as meninas se aproximavam eu fazia o jogo de pose, ou melhor, levantava todos os outros dedos para as pessoas não perceberem, no entanto era pior, pois parecia que todos eram defeituosos.
Tive no decorrer da minha vida várias situações engraçadas, engraçadas agora claro, pois na hora eram de enfiar a cabeça no buraco mais próximo.
Certa vez numa aula de natação enquanto alongava, minha professora foi enfática: “Cassiano, não disfarça não, pode encostar esse dedinho no chão” – Que jeito fessora?
No futebol logo que perceberam começaram a me chamar de “dois dedo e meio” – “Vai Cassiano, bate de dois dedo e meio” e quaquaqua...
Isso logo foi superado, no entanto os percalços da minha vida foram marcados por um certo desequilibro que hoje me faz refletir: Será que se meus dedos fossem direitos eu não já estaria rico, rindo à toa, ao invés de ter minha carteira profissional lotada de pequenos tele-empregos? Será que uma nuvem negra que deixou seqüelas emocionais na minha vida na adolescência não seriam mais facilmente superadas se andasse reto?
Sei que nunca vou responder essas perguntas, e também não vou encostar meus dedinhos de novo no chão sem fazer um grande esforço. Só nos resta, caro leitor, rir até não poder mais.

Comentários

Michell Niero disse…
Assim como seus dedos do pé, amigo cassiano, o desuso do que não faz falta, às vezes, nos pega pelo colarinho e diz:
- lembra de quando eu era importante?
Você acabou de relatar um processo que culminou a esta diferença física. Se fazem falta ou não, eu não sei, me pego mais à vivência, ao caminho único que o fez chegar aqui.
Respondo: tua vida seria diferente sim; assim como eu, que louco pelos complexos na minha mocidade, deixei de seguir outros caminhos.
Um conunto de portas que eu abri e entrei me fizeram a chegar em seu blog e escrever um comentário.

Por isso que me irrita a frase do Manoel Carlos, que rendeu uma crônica à respeito " a vida é um grande clichê e ninguém, pode se livrar disto"

E quanto ao meu texto, confesso, não gostei também . O fiz sem o devido carinho. Mas a idéia é aquela, lá.

Abraços

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